quinta-feira, 11 de outubro de 2007

«A Ronda da Noite» - Rembrandt van Rijn

Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Leiden, 1606 - Amesterdão, 1669

Em 1638, Maria de Médicis, ex-rainha de França exilada na República das Províncias Unidas, é recebida em Amesterdão. O capitão Frans Banning Cocq, Senhor de Purmerlandt e do Ilpendam, e o tenente Willem van Ruytenburgh, Senhor de Vlaerdingen, pretendem fazer-se retratar na companhia da sua milícia de artilheiros, os Kloveniers – os arcabuzeiros. Eis o pretexto para Rembrandt Harmenszoon van Rijn criar mais uma obra-prima entre as muitas que entretanto atestam já o seu prestígio de excelente retratista.

Nos Países Baixos do século XVII, o retrato cívico é uma tradição já com dois séculos, mas o génio do pintor, ao invés de a desvirtuar, vai conferir-lhe aquele sopro de vida que caracteriza e distingue a sua pintura. Em vez da representação tradicional do grupo em filas paralelas ou sentado à mesa do banquete anual, é em plena acção que o grupo parece ser surpreendido, como se de um instantâneo se tratasse. Daí o nome indevido de A Ronda da Noite pelo qual desde logo se torna célebre, ainda que o seu exacto título seja A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq e do Tenente Willem van Ruytenburgh. O excesso de verniz, que manteve a tela escurecida até 1947, contribuiu para reforçar a ideia errada de uma cena nocturna.

De Nachtwacht, 1642, Rijksmuseum Amsterdam

Apesar dos cortes laterais, superior e inferior que sofreu no século XVIII, o quadro a óleo sobre tela é ainda uma obra de grandes dimensões – 363 × 437 cm. A simetria do plano de fundo, onde se situa a porta pela qual a companhia vem saindo para o exterior, é ainda sustentada pela disposição algo simétrica dos dezasseis milicianos, embora o claro-escuro impossibilite a simetria perfeita. Ela é, porém, desfeita pela presença do capitão e do tenente à direita do centro, o que confere tensão ao quadro. O olhar é levado a deslocar-se um pouco para a esquerda, na direcção em que ambos caminham. E esta sensação de movimento comunica-se às restantes figuras que são captadas em diferentes momentos de acção: preparando-se para disparar, disparando e depois de disparar. A alternância de luz e sombra intensifica ainda mais a impressão de movimento, de acção, de vida, e a atenção prende-se às figuras mais importantes – o capitão e o tenente –, graças à intensa luz descendente que os destaca.

O carácter simbólico de alguns elementos desempenha um papel decisivo na identificação da companhia dos Kloveniers. A rapariga é uma espécie de mascote. Presa à cintura traz uma galinha, cujas unhas (klauwen, em Neerlandês) aludem ao nome da companhia, e na mão segura o corno das libações rituais. A pistola por trás da galinha representa o arcabuz. E o arcabuzeiro em frente da rapariga tem um capacete enfeitado de folhas de carvalho, um motivo tradicional da companhia. Um último pormenor subtil permite identificar a companhia como sendo de Amesterdão: na lapela da jaqueta do tenente vêem-se as três cruzes pertencentes às armas da cidade.

Os arcabuzeiros estão em movimento, falam uns com os outros e empunham as armas, e o capitão dá ordens ao tenente para a companhia marchar. É este dinamismo que torna A Ronda da Noite um quadro inovador e radicalmente diferente de todos os outros quadros de milícias cívicas. A mão do capitão e a arma do tenente, em primeiro plano, parecem sair da superfície da tela, graças à perícia pictórica de Rembrandt. Ambas contribuem para a cabal identificação das figuras: o gesto com a mão que dá a ordem inicial distingue o capitão, e a partazana simboliza o posto do tenente, na sequência de uma tradição medieval. O bordão que o capitão segura é também um elemento de identificação da patente, bem como as alabardas que os sargentos empunham.

As cores e as tonalidades, vibrantes e luminosas, além de distinguirem o plano anterior dos restantes, contribuem para realçar as figuras do capitão e do tenente, retratados com minúcia e apresentados com os ricos trajos que individualizam as suas patentes: o capitão, de negro e ostentando uma faixa vermelha, e o tenente, de amarelo dourado. Os planos posteriores, mais sombrios e pouco coloridos, criam um magistral efeito de contraste que, por si só, torna o quadro uma obra-prima.
Rembrandt encaminha-se para a maturidade absoluta precoce, que atinge antes de qualquer outro pintor de génio.

RIC

15 comentários:

Manuel Braga Serrano disse...

Que não te aconteça o mesmo que ao último dos Nabasco!!

Catatau disse...

Este homem foi um senhor. A Ronda é tb uma das suas telas que prefiro (embora quem me tire o Retorno do Filho Pródigo - Hermitage - ou o Aristóteles contemplando o busto de Homero - Metropolitan Museum of Art, NY - enfim...).

Ainda por cima, o pessoal da Ronda tem um certo ar Bear, rsrsrsrsss. ;)

RIC disse...

Olá caro Manuel!

«(…) A obra é por fim destruída pela fúria ciumenta de uma mulher e o mapa da vida de Martinho Nabasco desaparece. A conversão da 'Ronda' em imagens desfocadas espelha-se no desvanecer lento e apagado de Martinho (como os homens do capitão Cocq na 'Ronda', vagarosos e sem brilho), em contraposição às mulheres que consigo se cruzaram, estrelas que iluminavam a sua memória. E Martinho morre na antecâmara de uma ronda nocturna sem regresso, vencido pela fragilidade que é a realidade.»

Os críticos literários em geral adoram lançar-se a galope, à desfilada por terrenos que ignoram… Duvido que quem escreveu o excerto acima se tenha sequer dado ao trabalho de observar a tela com a devida atenção, ou não diria que os homens são «vagarosos e sem brilho»…
Adiante, rumo a outro «sacrilégio»: além do de Lobo Antunes, não gosto do discurso literário de Agustina. (O que não significa que não a leia.)
Quanto a poder eu vir a ter um fim semelhante a Martinho, é difícil: não há mulheres amantes na minha vida! Rsrs!
Um abraço! :-)

RIC disse...

Olá caro João!
Há em Kassel um Rembrandt que, «visto ao vivo e a cores», é absolutamente fascinante. Trata-se do fabuloso (quanto a mim...) retrato de Saskia van Uylenburgh! Por (longos) instantes é difícil acreditar que «aquilo» é uma tela... E não apenas por ser tudo muito perfeitinho, não! Fiquei extasiado ante tanta beleza e tantas interpretações... de apenas um retrato!
Um certo ar «bear»... Rsrs! Provavelmente seria «l'air du temps»... normal daqueles tempos! Rsrsrs!
Um abraço! :-)

Special K disse...

Verdadeiramente maravilhosa esta tela e realmente eles t�m um certo ar "bear". Rsrsr!
Um abra�o

Minge disse...

I was at my art history class today. He was mentioned, too! Only briefly, though. We don't get to him properly for another few weeks.

RIC disse...

Olá caro Paulo!
Foi um grande prazer vê-la de perto! É avassaladora ao primeiro impacto, em termos de dimensões.
E foi também um grande prazer escrever este texto...
Quanto ao ar «bear», como já disse, estaria então em moda na Europa de meados do século XVII. Não deixa de ter o seu quê de... apetitoso... Rsrsrs!
Abraço! :-)

RIC disse...

Hello dear Minge!
Oh I'm so jealous of you! You must spend a wonderful time at that art class! Thank God there's internet for you to be able to access so many works of art that only a few years ago weren't visible but «in loco» or in magnificent - and quite expensive!... - art albums...
I was lucky: there weren't so many people around when I got to watch it in Amsterdam...
So get ready for it in a few weeks!
Hugs! :-)

Leo Carioca disse...

É uma obra mesmo incrível!

RIC disse...

Olá Leo!
Eu acho-a sobretudo imponente! E fiquei com a clara impressão de que as duas figuras principais representam na perfeição o garbo militar. (Ainda que eu seja antimilitarista, sou-o em relação aos dias de hoje; a História não se compadece de anacronismos absurdos...)
Um abraço! :-)

Minge disse...

I'm always ready!

RIC disse...

Hello dear Minge!
No doubt about that at all!
I must congratulate you once again on your excellent video! That is indeed a fantastic job! And you are fabulous on it!
I believe you know I'm not that much into «sound & picture» (in the audiovisual sense of the phrase), but I have to admit the «picture» I had of you in my mind was enhanced by at least 100%! And you know too I liked you and your blog very much already.
My best wishes for «Part II»! :-)

GMaciel disse...

Mais um cartão de cultura para o meu espírito.
:)
jocas grd

RIC disse...

Olá Graça!
Aqui, na blogosfera, a troca é a moeda vigente: tu dás-me uma coisa, eu dou-te outra! Gosto muito que assim seja!
Um beijinho para ti também! :-)

Ibel disse...

Ric

Foi de grande utilidade este texto.
Grata!

IBEL